Uma Bolinha de Papel

Dirijo pela minha avenida preferida, como se não tivesse nada para me preocupar, o que é uma verdadeira mentira, mas quem precisa saber? 

O que importa é sentir a minha música surgindo na playlist. Cada novo toque no piano move uma parte do meu rosto, começa pelo canto direito da boca, depois pelo esquerdo, até abrir um sorriso completo. Então, o meu corpo balança, o refrão chega com tudo e eu grito, canto alto com toda a minha afinação de gato. Canto!!!! Reduzo a velocidade no amarelo e tento dançar dentro das regras de trânsito.

Um carro passa ao meu lado, e para um pouco à frente do meu. A música está tão alta quanto a minha, como eu sei? Porque a música dele tentou invandir o meu carro, escapoliu de todo aquele buraco sem teto. Pelos movimentos, ele também está cantando, deixando a música guiar. 

Nesta pista, não estamos sozinhos. 

Me empolgo, mesmo com as limitações, capricho no movimento do corpo, nas caras e bocas e por poucos segundos estamos dançando em uma pista de dança. Completamente mergulhados pela excitação de vivermos aquela batida. Sinto ele me pegando, me levando nos passos e nossa conexão é tamanha que criamos nossa própria coreografia. Uma paquera na pista de dança, era tudo o que eu precisava. Aumento o som e ele fica para trás. Foi perfeito enquanto durou.

Fecho os olhos por milésimos de segundos, enquanto o farol está vermelho, como se para sentir a música entrando profundamente por minha pele, meus ossos... Caramba, isso é bom!!!

Uma buzina abre meus olhos, nada vai estragar o meu humor, peço desculpas e sigo em frente com o verde autorizando minha passagem. No automático olho para o retrovisor direito e de relance vejo um papel amassado. Oi?!

Seguro firme a direção e olho para os lados para entender de onde veio esse papel. Sua doida, a sua janela estava aberta demais no semáforo, e se alguém te assaltasse? Ok, ninguém assaltou, acontece. Sim, eu adoro manter a janela do carro aberta, me julguem. E minha avenida preferida permite as janelas abertas.

Estico o braço para pegar o papel, mas erro e o empurro para longe. Ele cai no chão. No próximo semáforo pego. Droga! Está longe demais, preciso tirar o cinto. Não vou fazer isso, vai que no final das contas é um lenço de papel usado.

É isso, ali tem um posto de gasolina! Não aguento de curiosidade, faço um retorno, paro no posto: 20 reais de álcool, por favor. A moça abastece meu carro, eu tiro o cinto e pego o papel. Uau, está mega amassado, uma bolinha com densidade ideal para ser lançada à longa distância.

Nem abro o papel direito e leio as primeiras palavras: bora dançar?

Oi? Como assim? Abro um sorriso. Isso é um sonho? Me belisco. Aíiiiiii!!! Definitivamente, estou acordada.

— Vai pagar no cartão? — me assusto e amasso o papel como se fosse um segredo só meu.

— Vou sim. Preciso sair?

— Não, vou trazer a maquininha.

Volto para o papel. Respiro fundo. Não sei se quero ler o resto, tem mais? Isso é possível... Em pleno século XXI receber um convite para dançar? Pior, um convite para dançar em um papel. Um papel de verdade, escrito em caneta azul.

— Aqui. — Passo o cartão, mas estou tão animada e nervosa que erro a senha. — Droga! — respiro fundo. Coloco os inúmeros números em ordem e tento de novo.

— Quer sua via?

— Não, obrigada!

Já tem um carro atrás de mim, não tenho tempo para abrir o resto do papel, largo no meu colo, saio e estaciono perto da loja de conveniência. Ok. Acho que agora dá. Solto o ar pela boca, saindo de um mergulho profundo.

“Bora dançar? Aumentei meu som. Gostou?”

Ahhhhhh...é o carro que passou do meu lado, aquele de capo todo aberto... E agora, e agora? Volto os olhos para o papel e tem um número. UM NÚ.ME.RO!!!!

Bato os pés no carro toda empolgada...ah, é fofo vai?! A gente arrisca tanta coisa perigosa por aí. Ele aumentou o som para mim? Não creioooooo!!!!

Saio correndo do carro, largo tudo, danço loucamente, abraço os frentistas, entro na loja de conveniência gritando loucamente que ele quer dançar comigo e ... volto para realidade. Apenas abro um largo sorriso! 

Tiro uma foto do papel. Guardo tudo no suporte de guardar tranqueiras do lado da porta, ligo a música que dançamos, dou partida e sigo o meu caminho. Afinal de contas, um pouquinho de suspense até eu chegar no meu destino final, tem tudo para deixar o percurso com gostinho de quero mais.

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