Dedilhado


Todas as noites sigo a mesma rotina. Ando pelas calçadas rumo ao metrô, o primeiro acesso não funciona mais, então me direciono para o segundo acesso. E, todos os dias, me pergunto porque o primeiro acesso fecha.

Um esbarro aqui, outro ali, desço correndo as escadas, como se quisesse adiantar o quanto antes o percurso. Em poucos minutos já passei a catraca e desço mais escadas. Entro no metrô e aguardo ansiosamente pela conexão.
Na conexão a subida da escada é ritmada pelo som distante de um piano. Todas as noites, não importa se mais cedo ou mais tarde, ouço os toques daquelas teclas pretas e brancas. Ritmos melodiosos, tristes, às vezes, até parecem chorar a cada toque.

Sempre na minha corrida desenfreada, só permito que meus ouvidos ouçam, não me dou o direito de parar e ir até o dedilhar desconhecido. Eu sei, ali tem um um piano, por lá, tanto faz.

Então, certa noite, mais tarde do que qualquer outra, subia a escada praticamente sozinha quando o som do piano começou a acompanhar o movimento dos meus dedos - eles estavam batendo no corrimão, sabe, quando deixamos nossa cabeça apenas ao leo. Eu não corria, e parei, não permiti que meus dedos continuassem. A música parou também.

Estranhei. Comecei a dedilhar meus dedos e a música iniciou. Por alguns momentos, tive a sensação de estar eu mesma tocando o piano. Mas não seria possível, não tinha sentido. Afinal de contas, nas demais noites, eu não dedilhava, eu apenas andava rumo ao metrô. Não era?! E como eu poderia estar fazendo o ritmo da noite estando tão distante do piano?!

Parei no meio do caminho. Não consegui seguir em frente. Sentia uma forte atração para o lugar onde se encontrava o piano. Caminhei devagar, brincando com meus dedos e o som que ele parecia produzir. Acredite...até a antiga música do gás, que nunca sei o nome, consegui tocar.

Cheguei no piano, ele estava lá, eu sabia, não estava de toda louca, o piano existia. Lembrava de já ter visto ele por ali, e achei o máximo as pessoas poderem tocar de graça. Então, eu estava a ponto de sossegar e me tranquilizar quando senti meus dedos dedilhando sozinhos, e junto com eles a música surgindo e o piano obedecendo.

Comooooo?!?! Eu tocava o piano à distância?!!? Seria isso possível?!?! Sentei no piano para respirar, olhei para meus dedos, para as teclas pesadas daquele piano e não compreendia o que estava acontecendo. Ao apoior meus dedos nelas, não acontecia, eu tentava tocar, mas não sabia. Este fato não me assustou, afinal de contas, eu realmente não me lembro de ter aprendido a tocar piano.

Ainda sentada de frente para o piano, apoiei os dedos em minha coxa e comecei a dedilhar qualquer coisa, o piano escolhia qual o acorde correto e a música surgia. Músicas clássicas, contemporâneas, não tinha vez, eu arrasava. Eu?!

Em um relance vi as horas, precisava correr, pelos meus cálculos aquele o próximo vagão seria o último. Sem entender nada, fechei correndo o piano e corri, enquanto dedilhava minha música preferida.

0 Comentários